quinta-feira, 26 de abril de 2012

O anjo de Marselha


Não era só um goleiro.
Era o guardião final das esperanças da Seleção Brasileira de voltar a ser campeã do mundo, após duas décadas de fracassos.
Homem exemplar. Controlado, sereno. Caráter elevado, imune a ataques pessoais. Cláudio Taffarel, um dos goleiros mais atacados pela crítica em sua passagem pela camisa 1 do país, suportava tudo calado, sem brigas. O coração era bom demais para pensar em revanche.
Respondia no campo. Porque ele pode ter falhado em sua carreira, em clássicos entre seu Inter e o Grêmio, e em jogos da Seleção. Mas quando se tratava da tarefa máxima de qualquer atleta, era inatacável: foi sempre goleiro de Copa do Mundo.
Assim foi nas Copas de 1990, 94 e 98, com um fantástico saldo de um título mundial, um vice e aquela eliminação triste em sua primeira Copa, em que não teve a mínima culpa na equipe montada por Sebastião Lazaroni. E, ainda em 1990, abre as portas do futebol europeu, fato raríssimo para um goleiro brasileiro, ao ser contratado pelo Parma italiano.

Estados Unidos, 1994. Depois de 24 anos sem levantar a Copa do Mundo, veio o tetra comandado por Romário. Verdadeiro assassino da grande área, no melhor momento de sua carreira, o Baixinho foi o grande artífice da conquista que redimiu o futebol brasileiro (não para os amantes do esporte, pois o título veio com aquele futebolzinho “eficiente”, mas chato e feio do técnico Parreira). Só que Romário passou em branco na final, contra a Itália. Não conseguiu dar uma derradeira e decisiva estocada.
O Brasil só ganharia essa Copa nos pênaltis. Tá, o artilheiro converteu o seu, mas a missão mais dura ficou nas mãos de Taffarel. Aquele que fora taxado de frangueiro por muitos (resultado de falhas como as da Copa América de 93, contra o Uruguai, ou nas eliminatórias para a Copa de 94, frente à Bolívia). E que, para muitos, não havia sido um goleiro provado na Copa dos Estados Unidos, graças à fragilidade dos adversários e à segurança da impecável zaga formada por Aldair e Márcio Santos.
Taffarel não falhou quando mais se precisou dele. Defendeu um pênalti na disputa final contra a Itália. Foi o último a brilhar no grupo que trouxe o tetra. Para muitos foi o herói daquela decisão. Mas ele nunca quis isso. Quando Baggio partiu para bater o quinto e último pênalti da Itália, Taffarel não queria defender e tornar-se o grande herói. Preferia que o italiano chutasse pra fora. Por quê? “Se eu defendesse mais um pênalti, talvez fosse considerado o único herói daquela história. Como Baggio mandou a bola por cima do travessão, o heroísmo foi de todos”, disse o goleiro a um programa da Rede Globo exibido em 2004, comemorando os dez anos do Tetra.   

1998. Quatro anos depois, ele joga na França sua terceira Copa do Mundo seguida, façanha inédita para um goleiro brasileiro. E protagoniza o grande momento da Seleção na Copa. A dramática semifinal contra a Holanda. No tempo normal faz milagres em chutes à queima-roupa de Kluivert e Bergkamp. Depois, mais uma vez, os pênaltis. E mais uma vez, o brilho de Taffarel. Defende duas cobranças e, vibrando muito, grita na noite da bela Marselha: “Não fui eu. Foi Deus”.
Foi você, Taffarel, protetor humilde da nossa grande área.

2003. De repente, o fim. Só mesmo um homem sereno, de grandes convicções e avesso aos holofotes pode encerrar a carreira como Taffarel. Ele está em uma tranqüila estrada italiana, sozinho em seu carro, dirigindo para o treino de seu clube, o Parma, quando resolve voltar para trás, para sua casa na Itália. Telefona para o clube e avisa que está abandonando o futebol. Pressentimento ? Destino? Não, apenas resolve, aos 37 anos, que já basta. “Não quero partida de despedida, nada disso. Não creio que seja importante. A despedida que tive foi um jantar que me fizeram meus amigos de Parma. Isso é o que levarei do futebol, as amizades eu fiz no mundo todo”, declarou Taffarel poucos dias depois.
Assim terminou a carreira do goleiro que conquistou o mundo com seu arrojo e segurança na hora mais importante, a Copa do Mundo. Pouco se falou na imprensa de sua despedida dos campos. Raras colunas e reportagens especiais foram escritas. Talvez porque não fosse figura de grandes declarações e polêmicas.
Talvez porque realmente fosse diferente, como acreditou numa noite mágica da Riviera francesa.
Faltaram então palavras para explicar um goleiro e homem que tinha asas.  
(Publicado em meu último livro, Heróis do Esporte, Heróis da Vida)

sexta-feira, 13 de abril de 2012

100 anos de molecagens


Conheci a dor no futebol e na vida (na vida de um garoto do passado o futebol era igual à vida), com a alegria dos Meninos da Vila originais. Meu São Paulo de Valdir Perez, Getúlio, Dario Pereyra, Serginho, Zé Sérgio e cia, que ensaiava uma fantástica equipe para os anos 80, acabou perdendo o Paulistão de 78 para o renovado Santos de Pita, Nilton Batata, Juari e João Paulo. Naqueles tempos o Paulistão era um super campeonato empolgante em que os clubes grandes davam tudo (não se dividia o Estadual com a Libertadores e Copa do Brasil), enchiam os estádios (qualquer clássico tinha 100 mil pessoas no Morumbi) e ainda penavam contra fortes e aguerridas equipes do interior.
Lembro até hoje da leveza, habilidade e velocidade daquele ataque infernal santista, armado pelo meia Pita para as arrancadas supersônicas de Nilton Batata e João Paulo pelas pontas (sim, ainda existiam pontas, e eles partiam pra cima e sabiam cruzar e passar na medida além de driblar...), até a conclusão mortal do ligeiro e sempre bem colocado Juari. Eram dois timaços e a juventude santista acabou levando a melhor na melhor de 3 jogos, o que mostrou que apostar na molecada era um ótimo investimento.
Hoje, depois de mais duas gerações vencedoras de endiabrados Meninos da Vila (a 2ª teve Robinho, Diego e Elano; a 3ª, Neymar e Ganso), e do sucesso das canteras do Barcelona, só mesmo os nossos dirigentes brasileiros cegos (ou metidos em armações e comissões com empresários...) para não perceberem que a arte perdida do futebol brasileiro só pode voltar a surgir apostando-se na molecada.
Hoje, temos Neymar e só. Sorte dos alvinegros praianos, que ainda podem vê-lo em ação, e azar da maioria dos outros clubes e de nossa seleção burocrática, onde Neymar não pode fazer milagres sozinho.
Parabéns aos 100 anos de um clube que sempre investiu na arte desde quase o berço, dos meninos das areias de suas praias.
PS - Graças que pelo menos um dos Meninos da Vila virou Tricolor. Mais que isso, um verdadeiro maestro: Pita. Foi dos pés geniais dele que saíram muitos dos gols e títulos do talvez São Paulo mais bonito da história, a máquina de Pita, Silas, Muller, Careca e Sydney, campeões paulistas e brasileiro na metade dos anos 80.
* Assistam ao vídeo também, tricolores, para ver golaços de um time que não foi campeão, mas já brilhava.

O homem que dava presentes

    Não sabem de onde veio o intruso. Apareceu de surpresa no campo de treino do clube. Quando iam expulsá-lo, disse com firmeza: “Eu dou gols”.
    O velho treinador percebeu a verdade e frieza dos seus olhos e lhe deu a camisa que há muito guardava. A 10.
    Uma hora depois os jogadores e alguns torcedores mal podiam falar. Incrédulos, nunca haviam visto tantos gols em um treino.
    O homem frio não tem amigos nem família. Onde chega, instala-se em um pequeno quarto de pensão. Seu dia-a-dia é de silêncio e vazio, não fosse um detalhe. Não fosse a única razão que ainda o faz respirar. Um objeto, uma arte. A bola e sua capacidade para colocá-la onde quer. Um “onde” solidário: sempre o pé ou cabeça de um companheiro. Cada passe ou lançamento, meio gol. Doces presentes do homem que não sorri. Entregas precisas do “carteiro do gol”, como lhe apelidou um veterano jornalista de mais uma cidadezinha perdida por onde ele vaga.
    O homem que oferece gols logo garante vitórias, muitas. Logo vira ídolo, mas nada o faz extravasar. Nada de vibrar com os parceiros ou tirar uma dos rivais. Nenhum mínimo gesto de comemoração, como se fosse um mero carrasco a cumprir sua obrigação e sina.
    Não é sina. É promessa.
    Terminada a decisão do campeonato – campeão, claro – sacou aquele par de chuteiras mortais, pediu de lembrança o uniforme do clube e deu sua segunda declaração em toda a temporada: “Adeus, amigos”.
    Por que vai embora, maestro? Por que não fica?, atreveu-se a perguntar o menino que desandou a fazer gols graças ao 10 brilhante.
    “Minha esposa me pediu, antes de morrer: Faça a alegria das torcidas. Semeie gols, meu querido”.
    Olhou para o garoto, deu um leve aceno de cabeça honroso e partiu. Porque nada era maior que seu amor pela esposa falecida. Nem o futebol.    Poucos dias depois, o garoto que aprendeu a fazer gols com o 10 ganhou de presente do velho jornalista a foto da matéria que não teve coragem de escrever. O 10 em seu quarto modesto de pensão. Dezenas de camisas de futebol estendidas na cama e um homem ajoelhado ao lado delas, de frente à foto de uma bela mulher.
    “Sabe o que ele disse enquanto rezava, garoto?”
    O menino, vidrado, arrepiou-se todo.
    “Disse exatamente isso: Tem mais uma torcida alegre hoje, moça. Já cumpri minha missão, certinho como você me pediu. E sabe que nunca vi um cara fazer gols tão bonitos com meus passes?! É um garoto. Podia ser nosso filho, ele tem a arte do pai e a sua alegria e beleza nos olhos. Esse tem amor e futebol nos pés, querida. Espero que nunca mude seu coração de goleador apaixonado.”

    “Não mudarei, mestre, não mudarei.”
    Nascia então outra lenda, a do menino que fazia gols como se estivesse fazendo amor.

Não eram apenas meninos

   Pequeno mas valente, no saudoso mundo dos campinhos de terra da infância ele descobriu o poder do grito. Aquele mais belo, do fundo do peito, que só os meninos com muito amor à bola e à batalha conseguem emitir. O grito que anima.    O brado urgente surgiu em sua vida após não suportar a cabeça baixa e falta de reação dos colegas durante a final do campeonato do bairro; e logo no dia em que seu pai conseguiu uma liberação do trabalho para ver o filho jogar pela primeira vez.
    Certos momentos são decisivos. Mudam destinos e vidas. Separam gente comum, que atravessará a vida sem causar impacto, das raras classes de pessoas marcantes, inspiradoras.
    35 minutos do segundo tempo é um momento já longe demais, especialmente em uma decisão. Por isso os companheiros de Diego abaixaram a cabeça ao verem a bola no fundo do gol que defendiam. Estavam derrotados.
    Eram apenas meninos. Não possuíam ainda aquela força misteriosa que gente grande tira de não se sabe onde para dar a volta por cima.
Só que não eram meninos comuns.
Não eram apenas companheiros a defender uma camisa.
    Eram amigos. Amigos com uma intensidade e promessa que os adultos um dia esquecem: “amigos para sempre”. Amigos forjados nas conversas à beira da calçada, nos sonhos e paixões compartilhadas diariamente nesse tempo mágico em que ainda temos tempo para quem realmente importa: a infância.
    Amigos dessa coisa imensa que é um time de futebol criado por um grupo de garotos pobres. Um time que não é apenas um conjunto de camisas compradas numa loja qualquer, mas sim um manto trabalhado com afeto por suas mães. Mães que encontraram tempo - depois de trabalhar o dia todo, cuidar da janta e botar seus meninos pra dormir e sonhar - para costurarem um símbolo, um número e o nome de seus filhos nessas camisas amadas.
    Os nomes nas camisas, fato raro naqueles tempos, foi a primeira coisa que Diego olhou. Os nomes de seus irmãos. Nomes encurvados junto daquelas costas e cabeças abaixadas. Foi então que lembrou das duas imagens mais bonitas que vira na vida: a primeira, da mãe dormindo sorrindo sentada na cadeira, linha de costura e camisa agarrada na mão cheia de calos e carinho; linha de costura e agulha espetada na última letra de seu nome, um “O” de Diego. A segunda imagem foi o rosto iluminado e orgulhoso de seus amigos quando todos se encontraram pela primeira vez, para o primeiro jogo em que puderam defender as camisas praticamente feitas por suas mães.
    Por todos esses sentimentos e lembranças, Diego pegou a bola do fundo do gol, levantou seu goleiro e então gritou.
    Gritou com cada um.
    Não foram gritos de acusação ou raiva, e sim de dor, amor e vontade. Do verbo vital que habita a alma dos lutadores e verdadeiros capitães: o verbo animar.
    Foram gritos de família, aquela inesquecível que é forjada nos campinhos da vida e da infância.
    Foram gritos acompanhados de veias ressaltadas em cada músculo da face, braços, peito e corpo todo.
    Foram gritos que semearam, com todas as forças, um sentimento poderoso chamado acreditar.
    Depois daquilo, os menos de dez minutos viraram uma vida.
    Viraram uma daquelas raras recordações que jamais serão apagadas naqueles meninos heroicos.
    Os gritos da virada; cheios de terra, sangue e da alegria mais bela que aqueles meninos, seus pais e mães poderiam sentir.
    A alegria de vencer com o mais puro e verdadeiro amor à camisa.

O santo


A bola lançada na ponta é decisiva. Caso a domine, poderá servir seu companheiro sozinho na área. A torcida adivinha, fica de pé. Ele dispara rápido mesmo sendo alto e forte, na verdade um touro. A imagem lembra o caminhão furioso na contramão, pisando fundo, do clip da porrada Enter Sandman, do Metallica. O adversário chega, porém, ao mesmo tempo.
Voltando no tempo a uma disputa anterior, ele foi derrubado por um pontapé sutil que o juiz não percebeu. Acelerando um pouco o novo duelo, vemos o mesmo rival caído fora do campo, jogado no alambrado rente ao campo. O gol está próximo...
Não pensem que ele derrubou o beque deslealmente. Jamais faria isso. Apenas usou o corpo. “Atlas não carregou o mundo nas costas? O mínimo que um meia ofensivo deve fazer é desviar o mundo com os ombros”, disse O Santo após o jogo.

Mais que mensagens, ele deixou imagens, gestos, ações. Falava pouco. Mas quando cedia, finalmente, uma rara entrevista, não eram meros depoimentos. Era sabedoria. Respondia em forma de aforismos. Sentenças breves, decisivas como uma jogada mortal.
- Por que não reclama das faltas?
- Homens não reclamam. Apenas se levantam.
- Por que não revida pontapés?
- Vingança é para os fracos. Pior, vingança atrai vingança.

Assim segue O Santo. Assim se fortalece. Não desperdiça energia se lamentando. O que faz é partir pra cima na próxima jogada com vigor, com a sabedoria dos durões do velho oeste. Encara de novo o agressor e o pulveriza aplicando-lhe a implacável equação da arte + força. Dribla-o e derruba-o. Antes disso, projeta sua figura assustadora sobre o adversário. Nada é mais belo que mostrar a verdade: eu passarei.
 
Nada é mais violento que o agressor ser nocauteado limpamente, o craque dizendo com os pés, corpo e alma: Não me derrubarás. Ao contrário...
 
Lá vai O Santo. Já foi, partindo feito um rio caudaloso, imparável, em direção à meta adversária. Os adversários o temem cada vez mais.
 
Quem não teme um Santo Guerreiro? Quem não teme um Homem que derruba espadas com o peito e ombros?
 
Quem não teme um meia forte, veloz, vertical, que avança sobre as hostes inimigas como um cavaleiro medieval de lança a cavalo?
Lá foi O Santo. Só ele mesmo para transformar sua guerra santa em um grito de goooolll!